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Segundo notícias da passada semana, duplicou (entre 2009 e 2012) o número de pessoas que se deslocaram à Suíça para morrer através de suicídio assistido. Como se sabe, tanto o suicídio assistido (no qual o próprio suicida põe termo à vida com a ajuda de outrem) como a eutanásia (em que são outros que administram os produtos letais a pedido do suicida) são proibidos em Portugal e em grande número de outros países. Daí, o já se falar de "turismo do suicídio".
A minha perplexidade sobre a proibição do suicídio assistido é grande. Em primeiro lugar, porque não consigo encontrar um único argumento, próprio de uma sociedade laica (ou seja, exceptuando frases como "o suicídio é pecado"), que possa privar uma pessoa da liberdade de decidir morrer. Em segundo lugar, entendo que, ao decidi-lo, essa pessoa deve poder usufruir de um serviço civilizado que implique ausência de dor e de espalhafato danoso para os outros (do estilo atirar-se para debaixo de um autocarro ou rebentar a cabeça com um tiro).
Um dos factores a que atribuo a presente proibição do suicídio assistido é a deficiente definição que existe, nas nossas sociedades, do conceito de liberdade. Por não existir uma definição geral e operacional, temos dificuldade em decidir sobre casos concretos. A regra de uso mais consensual de que me lembro é a seguinte: "a nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros". Em bom rigor, não se trata propriamente de uma definição, até porque, a sê-lo, tornar-se-ia uma "definição circular", pois incluiria o próprio conceito a definir. Como os estatísticos que definem o desvio-padrão como sendo "a raiz quadrada da variância, que é, como se sabe, o quadrado do desvio-padrão". De qualquer forma, é a delimitação do conceito que mais usamos no dia-a-dia; embora não sirva para nada.
Imagine o leitor a cena que vou descrever. Há alguns anos, antes da legislação sobre o fumo nos restaurantes, alguém (sujeito 1) acende uma cigarrilha ao lado de uma mesa onde crianças estão a comer. O pai destas (sujeito 2) protesta, dizendo que não há direito de o primeiro fumar a cigarrilha. Ao que o 1 riposta, explicando que não há qualquer letreiro a dizer que é proibido fumar e, que, por isso, tem direito a fazê-lo. Ao que o 2, já mais exaltado, responde que também não há nada escrito para proibir urinar no chão do restaurante e que não é por isso que uma pessoa tem direito a fazê-lo. O 1 diz então que isso é por uma questão de educação, argumentando logo o 2 que "educação, cada um tem a sua", e assim sucessivamente, até que, a determinada altura, um deles grita: "sim, porque a sua liberdade termina quando começa a minha". Pergunto: qual deles disse isso? Ou qual deles tinha legitimidade, de acordo com a opinião do leitor, para o fazer?
Quando uma ideia, ou um conceito, não são claramente definidos, temos tendência a deles fazer um uso consuetudinário, usando a tradição e, consequentemente, a ausência da reflexão. Mas eu tenho uma definição própria de liberdade. Postula que liberdade é tudo o que quisermos fazer, desde que respeitemos aquilo a que chamo "um dever central": não podemos causar dano objectivo a outrem (seriam necessárias explicações suplementares, mas fica para outra vez).
Usando esta definição, e voltando ao suicídio assistido, não vejo - como dizia no início - como seria possível negar a liberdade a alguém de decidir matar-se. Ou seja, tal acto não pode ser considerado crime.
Assim sendo, por que razão as pessoas que prestam assistência ao suicídio poderiam ser criminalizadas? Elas não são responsáveis pelos actos dos outros. Logo, não são causa. E não pode haver crime no facto de se criarem condições a um terceiro para exercer algo a que tem pleno direito. A existência de crime neste caso seria absurda: quem pratica o acto é inocente e quem ajuda é culpado?
Só há uma explicação para a manutenção de tais proibições nas sociedades ocidentais: os que fazem as leis, apesar de a sua legitimidade resultar de terem sido eleitos, acham que são superiores aos que os elegeram e decidem o que é melhor para estes, mesmo contra a sua (destes) vontade livre.
O grande Samuel Beckett descreveu esta atitude maravilhosamente, dizendo: "os moralistas são pessoas que coçam onde os outros têm comichão".
Ler mais: http://visao.sapo.pt/direito-a-morrer=f794314#ixzz3PGOOkBwF